
Quando minha memória alcança meus onze anos, ela sempre está lá me olhando, com aqueles olhos claros enormes e lindos, escondidos atrás de uma franja rebelde que quase sempre encobria seus pensamentos.
A lembrança mais distante que tenho é dela sentada à mesa da cozinha, dividindo seu tempo entre os deveres de casa e os desenhos das bonecas. Ah ela desenhava! Desenhava bonecas lindas, eram perfeitas e graciosas como as figuras da nossa coleção de papéis de carta.
A diferença de três anos na nossa idade nunca foi problema. Eu sentia que havia encontrado a minha alma gêmea, a irmã que eu nunca tive.
Ela não se importava com o meu jeito calado, nem com os meus cabelos curtos, muito menos com a minha falta de habilidade em fazer novos amigos.
Ela me abraçou e me acolheu do jeito que eu era, e isso foi muito importante para mim.
Talvez tenha acontecido porque no fundo éramos muito parecidas mas à época isso era o que menos importava.
Eu tinha uma amiga e havia ganhado o mundo.
O quintal da sua casa era nosso território sagrado. Passamos tardes sentadas nos galhos da enorme seringueira, que ouvia pacientemente todos nossos planos de vida: fundar um fã clube dos Menudos, invadir a casa mal assombrada da quadra, escrever letras de música, manter o estoque de bombinhas em dia, apitar na campainha das casas da vizinhança e sair correndo.
Foi ela quem me ensinou que se tirar o cachimbo da vela de uma motocicleta, ela não pega de jeito nenhum.
A tia Iracema assando pão na cozinha enquanto tricotava mantas e polainas. Os gatos se espreguiçando nas réstias de sol espalhadas pela casa. E os desenhos, sempre os desenhos a fazendo aqueles olhos enormes brilharem.
Jamais esqueci.
Encontrei minha amiga faz poucos dias, por meio destas redes que por vezes tecem boas tramas para a vida.
Minha Carla seguiu seu caminho e tornou-se a artista que sempre foi.
Exuberante e maravilhosa.
Chorei muito quando o destino nos separou e agora sei que ela chorou também. Até adoeceu, ela me disse.
Estamos juntas novamente, passando, aos poucos, a vida a limpo.
Ela assistiu um show do Rick Martin, eu assisti ao Robby Rosa e falei com o Charlie Masso. Acho que isso vale pelo fã clube. Faltaram alguns Menudos, mas ter visto estes, já está de bom tamanho.
A casa mal assombrada invadimos antes de eu mudar para Porto Alegre. Apitar nas campainhas está fora de questão para o momento.
Precisamos, agora, escrever letras de música, e refazer o estoque de bombinhas.
É… acho que isto, ainda temos tempo para fazer!
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